segunda-feira, 3 de outubro de 2011

HISTÓRIAS DO RECANTO ( I )


                Inicio hoje a primeira das histórias da série, conforme prometi em postagem anterior. A narrativa foi escrita em 1997 e publicada no número de agosto daquele ano no mensário “Jornal do Leste” que então circulava sob a direção do competente e grande amigo Gilberto Gnoato. Com algumas adaptações a começar pelo título, que na publicação jornalística era  “Uma Reflexão sobre o Outro Mundo”, republico-o agora no meu blog Páginas Escolhidas.

CATARINA
                Aos quarenta e sete anos, Catarina cerrou os olhos da carne e despediu-se da vida física. Tempo curto para uma vida comum. Extremamente longo para quem, como ela, passou a vida num leito, impossibilitada de executar os mínimos movimentos que lhe permitissem, por si só, andar, falar,alimentar-se e fazer a própria higiene.
                Aos dois anos uma meningite paralizara-lhe o desenvolvimento e, a partir de então, nossa personagem, ainda um bebê, permaneceu bebê por mais... quarenta e cinco anos..
                Filha de Ana Rosa da Silva, uma das mais antigas moradoras do nosso Recanto Fraterno, Catarina nos ensejou, pelas condições em que viveu, a visão de um quadro de abnegação, renúncia,sacrifício e heroísmo.
                Dona Ana, assim a tratávamos na intimidade, ingressou em nossa instituição juntamente com a pequena família, o companheiro Miguel, já então vitimado pela cegueira, e Catarina, totalmente tolhida em seus movimentos  pela paralização que a meningite havia deixado como sequela. Adentrava a valorosa mulher a nossa casa assistencial, carregando um pesado fardo: marido e filha em situação de invalidez dependendo dela para quase tudo.
                O tempo foi passando, após alguns anos o companheiro faleceu e D.Ana passou a dedicar-se inteiramente à filha. Ficou-lhe modesta pensão que, juntamente com o que a instituição lhe proporcionava,podia ela enfrentar o dia a dia, vencendo as dificuldades.
                Nos últimos anos, já octogenária, D. Ana continuava a árdua tarefa de   tantos anos: cuidar de seu neném, alimentando-o e higienizando-o várias vezes por dia. Compreensivelmente, uma quantidade de roupas muito maior do que teria qualquer família comum, devia ser lavada e enxugada. E D. Ana era então a única que ainda dispunha de fogão a lenha na casa que ocupava no Recanto, para poder enxugar roupas sobre o fogão quando não havia sol. Na era do gás engarrafado, encontrar lenha nas quantidades exigidas pelo consumo de D.Ana não era tarefa fácil. Apesar disso a lenha nunca faltou, ora eram restos de serraria, ora de casas demolidas cuja madeira não oferecia condições de reaproveitamento, ora era lenha comprada dos raros fornecedores que ainda mantinham a atividade. O dedo da Providência sempre abria portas para que D. Ana continuasse cumprindo sua nobre missão.
                Manifestando sua preocupação quanto ao futuro ela constantemente nos dizia: - Meu Deus! Se eu for antes quem vai cuidar deste anjo?
                De fato,em novembro de 1993, após breve enfermidade, D. Ana encerrava, aos oitenta e sete anos, uma existência sacrificial,  levando para o plano espiritual a preocupação de deixar o seu anjo, aos cuidados,  não sabia ela de quem.
                E mais uma vez a Providência Divina abria as portas para acalmar as preocupações de D. Ana. Uma de suas filhas, Antônia, que já vinha dando asssistência à mãe na enfermidade, passou a morar na casinha do Recanto e a atender Catarina. Fazia-o com enorme sacrifício pois morava no Capituva, tinha muitos filhos para atender o que a obrigava a fazer constantes idas e vindas. Assim mesmo cuidou de Catarina pelo espaço de nove meses. Para aliviar Antônia do encargo, para ela bastante pesado, a Providência novamente abriu as portas e Maria, outra filha de D. Ana, que morava no Retiro e tinha como companheiro o bom Izaias, resolveu cuidar de Catarina em caráter definitivo, levando-a para sua casa. E o bebê de D. Ana, que por nove meses foi o bebê de Antônia, passou a ser o bebê de Maria. Esta cuidou da irmã com extremos de desvelo por quase três anos.
                Nos primeiros dias do mês de julho de 1997, finalmente Catarina encerrou aqui na Terra sua etapa de dores. Deixou-nos motivos para profundas reflexões. Um deles, o mais surpreendente, foi a sobrevida que a fez permanecer no corpo físico por mais do dobro da idade normal para esses casos, pois, de acordo com informações da ciência médica, pessoas nas condições de Catarina, raramente atingem os vinte anos. De fato, pela falta absoluta de movimento, por anos e anos, seu intestino só funcionava com o uso de laxantes. Não bastasse isso, os ataques epiléticos que de tempos em tempos a achacavam, faziam seu mirrado corpinho contorcer-se entre esgares e espuma a sair pela boca.Após cada ataque, ela se quedava exangue, para depois, aos poucos, recuperar-se e continuar persistentemente a viver.O corpo fragílimo dava a impressão que o esgotamento levaria rapidamente à capitulação. No entanto, a natureza, fazendo verdadeiros prodígios, supria sempre aquele corpo de novas energias, para que a vida continuasse até um tempo que parecia cronometrado pelo destino.
                A que raciocínios nos induz o drama de Catarina?. Por quê, enquanto o comum das pessoas aprende a andar e a falar e, à medida que cresce e se desenvolve vai construindo a sua autonomia, desenvolvendo pelo estudo suas aptidões, para chegar à vida adulta exercendo o seu papel, sempre importante na comunidade, enquanto outras, como Catarina,  levam uma vida de quase meio século, aprisionadas num corpo atrofiado, sem voz, com movimentos mínimos, insuficiente para atender às mais elementares necessidades, totalmente dependentes de outrem para sua sobrevivência, numa situação irreversível, só solucionada pela morte?
                Procurando sintetizar o nosso pensamento e as nossas convicções sobre o assunto, diremos, nesta despretenciosa crônica,  que todos nós, sem exceção, somos viajantes do tempo,  e que nossa existência, como seres conscientes, conta com milênios de vidas sucessivas. Que assim,dos inúmeros acontecimentos que a história registra, não fomos apenas testemunhas mas também protagonistas. Quando, ao indagarmos onde se encontram os autores e as vítimas de muitos acontecimentos, dos quais nos horrorizamos ao tomarconhecimento, a resposta é que ao despojarmo-nos do corpo pela morte, conservamos integralmente a nossa personalidade, com toda a bagagem de conhecimentos, sentimentos e experiências que vimos acumulando nos séculos e séculos de etapas vividas aqui no mundo. E quando a consciência, juiz implacável, nos mostra de forma muito viva, os atos que, pela sua natureza , se caracterizam como crimes de lesa-humanidade, então o peso do remorso e de seu parceiro principal o complexo de culpa, nos impelo à auto-punição. Vai daí que muitos infratores da Lei Maior  estão em nosso meio, animando novos corpos, em processo de dolorosa mas voluntária terapia, para apagar da alma enferma, as marcas das transgressões às justas e sábias Leis Divinas. E, quem sabe, as vítimas de ontem não são os que hoje  amparam e assistem, aprendendo com isso o exercício do perdão que engrandece e liberta?
                Não sabemos e talvez nunca venhamos a saber qual o drama que está por detrás da excepcionalidade de Catarina. Podemos, no entanto afirmar que seu espírito este prisioneiro por quase meio século, enclausurado num corpo incapaz de movimentar-se. Prisão sem grades que, em vez de carcereiros, contou com o trabalho continuado de amorosos e solícitos familiares.
                O caso de Catarina foi de excepcionalidade em grau extremo. Lembremo-nos no entanto de outros excepcionais, cujo grau é mais leve, mas que requerem, quando colocados em nosso caminho, uma dose dobrada de amor, carinho, compreensão e trabalho. Podem ser almas que vem ao nosso encontro obedecendo ao impulso das grandes afeições que cultivamos no passado.
                No velório, antes de acompanharmos os despojos de Catarina até a sepultura, observamos a expressão do rosto. Parecia sorrir. Possivelmente o espírito,  quando sentiu aproximar-se o momento da libertação do longo cativeiro, deixou impressas as marcas da alegria de quem finalmente se liberta e se redime.
                A Catarina, manifestando-nos agradecidos pela maravilhosa lição de vida que sua vida sofrida nos deixou, e pelo exemplo de heroísmo anônimo, dado pelos que, pacientemente se consumiram no árduo trabalho de ampará-la, nossos calorosos votos de muito êxito nas novas empreitadas que hão de vir, e nos caminhos que percorrerá, buscando a evolução, rumo ao infinito.

                Caríssimos amigos(as), obrigado pela atenção,  até a próxima e um grande abraço do
               Prof. José Daher    

3 comentários:

  1. Oi Nazir:
    Sempre que estou com vc é um aprendizado muito grande....
    Acompanho e vejo como se dedica e se aprofunda colocando tanto amor e o melhor de si para que tudo saia perfeito nas postagens de Paginas Escolhidas, é um aprendizado muito grande estar com vc nestes momentos muitas vezes muito difíceis pela tua perfeição em tudo o que faz.
    Parabéns, continuo dando a maior força...
    Te amo Zelinda.

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  2. Eu me lembro da Catarina...
    Para nós que a víamos sempre deitadinha naquele leito, sem poder gozar de nenhum tipo de liberdade, nos penalizamos por tal situaçao. Porém, acredito que para o espírito de Catarina, esses 47 anos de vida na Terra nessas condições, foi de extrema valia, pois muito esse espírito pôde resgatar, assim como aqueles que conviveram com ela, pois o elo que unia essas almas, com certeza vem de longa data. Nosso Pai Celestial é tão bom, que nos deu a graça da reencarnação a fim de aprendermos, nessa perfeita escola que é a vida, a nos ajustarmos uns com os outros através do amor incondicional e assim caminharmos rumo à evolução.
    Após o desencarne, além de poder se libertar daquele corpo enfermo, o espírito de Catarina pôde se libertar das marcas que carregava de outras vidas e, consequentemente, alcaçar a verdadeira paz!
    Desejo de todo coração muita paz e muita luz aos espíritos de Catarina e D. Ana, assim como para D. Antonia, D. Maria e para todos que estiveram presente na vida deste anjo.
    Parabéns Sr. Nazir.

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    1. Lilian:
      Gostei imensamente da apreciação que você fez sobre a história da Catarina. Vejo, com muita alegria, que você revela um bom nível de conhecimento doutrinário ao interpretar, sob a ótica espírita,a vida sofrida de Catarina, tanto para ela como para a abnegada mãe, D. Ana. Parabéns e os meus votos são para que você continue crescendo no conhecimento com todas as coisas boas que esse conhecimento irá te proporcionar. Um grande abraço do amigo
      Nazir

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