segunda-feira, 31 de outubro de 2011

LARGO DO ACONCHEGO


                                                                                                         


                        Largo do Aconchego. Que nome poético para um logradouro! Pois, acreditem os leitores, o nosso Largo Dr. José Pereira dos Santos Andrade, .anteriormente denominado apenas Largo Dr. José Pereira, já ostentou o nome que serve de título a estas linhas. Quem nos passou a informação foi o nosso queridíssimo poeta  Portus Mariani,  pseudônimo do morretense radicado há muitos anos em Ponta Grossa, Lycurgo Negrão. Em nossa troca de correspondência, ele, quem sabe alimentando o desejo pela volta do antigo nome, sempre que endereçava as cartas  a mim  enviadas, escrevia: José Daher–Largo do Aconchego    51 – Morretes. É claro que, embora não existindo placas indicativas desse nome, a  carta sempre chegava às minhas mãos,  porque o carteiro me conhecia e entregava a correspondência no lugar certo. Sucedeu, no entanto, que uma dessas cartas acabou sendo devolvida porque  o entregador da correspondência,  que me conhecia,  entrou em férias e foi substituído por um jovem que não me conhecia . Meu amigo Lycurgo teve que reescrever o endereço e enviar–me novamente a carta. O episódio reacendeu um assunto que foi objeto das nossas conversas, muitas e muitas vezes.

                        Tudo começou quando, por lei municipal  oriunda de projeto aprovado pela nossa Câmara, o nome “Dr. José Pereira” deu lugar a “José Pereira dos Santos Andrade” nome completo do homenageado,  de cuja figura falaremos depois.  Convenhamos que, para servir de endereço, o nome ficou  quilométrico. Foi uma tentativa, inegavelmente justa mas nada prática, de conciliar os dois nomes  pelos quais ficou conhecido o nosso homenageado. Aqui em Morretes,  quando trabalhava nas fábricas de erva–mate do pai, era o popular “Zé Pereira”. No âmbito estadual ,  exercendo os cargos públicos que o  destacaram  na época, era o Santos Andrade, que dá a denominação a uma das importantes praças de Curitiba.
                        E aí, como ficamos nós ? Voltamos ao antigo nome  Dr. José Pereira, mais curto e mais prático ou adotamos o curto e também prático Santos Andrade? Ou ainda, deixamos tudo como está e “apelidamos” o nosso logradouro com o poético Largo do Aconchego o que não é nenhum absurdo pois a nossa  Alameda João de Almeida foi apelidada de Rua das Flores, o nome pegou e as duas denominações estão valendo. Uma oficial – Alameda João de Almeida –  outra não oficial – Rua das Flores.  Esta última vem  sendo usada  paralelamente à outra,  tanto que até uma placa  está  colocada lá.  Por que não” apelidar” o nosso Largo Dr. José Pereira dos Santos  Andrade de  “Largo do Aconchego “           ?  Em Curitiba, a rua  Comendador Franco também se chama Avenida das Torres. Os dois nomes  o oficial– rua  Comendador Franco – e o não oficial – Avenida das Torres – convivem harmonicamente.
                        Cogitar da mudança pura e simples para  Largo do Aconchego, penso eu, não seria recomendável. Significaria  apagar da memória uma figura maiúscula da nossa história  como foi a de José Pereira dos Santos Andrade.  Falemos dele agora.
                        Nascido em Paranaguá era filho natural do Comendador Antonio Ricardo dos Santos que o legitimou e  procurou fazer dele o seu continuador tanto nos negócios como na política. Como o pai, que  foi  presidente da província do Paraná em 1887, Santos Andrade, viria também a ocupar o  alto cargo, já no período republicano entre os anos de 1896 e 1900 .  Sobre o seu mandato transcrevamos parte  do que dizem os  seus biógrafos, os historiadores David Carneiro e Túlio Vargas:



   “ Deixou sua cadeira no Senado quando foi eleito para a Presidência do Estado. Seu período de governo foi excelente. Os quatro anos que vão de 1896 a 1900, foram de calma, de justiça, e tanto quanto possível, de apaziguamento dos ódios que a revolução federalista de 1893 a 1894 derramara e intensificara no Paraná, dividindo as famílias e até dentro do seio de cada uma delas, separando os seus membros mais exaltados.
            Florianista apaixonado, muitas vezes acompanhou o marechal vice–presidente da República, nas suas visitas de inspeção ao Morro do Castelo e as fortificações da Guanabara, arsenais de guerra e da Marinha, e outros pontos de grande risco, para onde convergiam os tiros da esquadra revoltada sob o comando do almirante Saldanha da Gama. Era então senador. Apesar da sua posição política, ofereceu–se, como comandante do 7 º  Batalhão da Guarda Nacional, para seguir na vanguarda da coluna do general Pires Ferreira, que em 1894  avançou pelo Itararé e retomou o estado do Paraná, que a revolução, malgrado sua tendência à dissolução, ainda conseguia manter. “
            Os acontecimentos que cercaram a disputa pelo Paraná e por Santa Catarina,  do território conhecido como O Contestado, teve no mandato de Santos Andrade um de seus episódios. Devolvamos a palavra aos historiadores. 
          Baseando–se em leis que nem o governo paranaense, nem o federal, poderiam reconhecer, tentaram os catarinenses ocupar grande parte do território paranaense da região contestada. Forte coluna da polícia barriga–verde, embarcada em lanchas e vapores, pretendeu realizar a navegação dos rios Negro e Iguaçu, da jurisdição paranaense. Contrapôs força à força e desarmou os soldados do estado vizinho, arrecadando–se, na ocasião, todas as armas e munições, em grande profusão aliás.
            É de lastimar–se que esse fato ocorresse já no período final de seu governo e que sua moléstia e consequente morte, o impedissem de ministrar ao conflito a solução brilhante que imaginara para dar fim, desde 1900, ao dissídio e ao conflito.”
           Falam–nos ainda os seus biógrafos da sua notável tolerância política  ao nomear oficial de gabinete um antigo adversário , o coronel Luís França, ilustre e digno paranaense cujos méritos pessoais todos reconheciam.
            Terminou seu mandato no dia 25 de fevereiro de 1900 falecendo poucos meses depois em Curitiba, no dia 15 de junho do mesmo ano.
            Como se pode concluir, a ilustre figura de Santos  Andrade,  embora nascido em Paranaguá  aqui fixou suas raízes e por largo tempo exerceu em nossa cidade inúmeras atividades ligadas à sua família. Entendo que não só  deve permanecer homenageado como também que mereçam ser melhor conhecidos sua vida e seu notável trabalho nos cenários paranaense e brasileiro.
            Sobre o nome do logradouro vamos começar a pensar no assunto?

Fonte das informações biográficas: publicação sobre a história do período republicano no Paraná de autoria de David Carneiro e Túlio Vargas, na edição da Gazeta do Povo de 23 de abril de 1989.

              Artigo escrito no ano de 2004.

           

segunda-feira, 3 de outubro de 2011

HISTÓRIAS DO RECANTO ( I )


                Inicio hoje a primeira das histórias da série, conforme prometi em postagem anterior. A narrativa foi escrita em 1997 e publicada no número de agosto daquele ano no mensário “Jornal do Leste” que então circulava sob a direção do competente e grande amigo Gilberto Gnoato. Com algumas adaptações a começar pelo título, que na publicação jornalística era  “Uma Reflexão sobre o Outro Mundo”, republico-o agora no meu blog Páginas Escolhidas.

CATARINA
                Aos quarenta e sete anos, Catarina cerrou os olhos da carne e despediu-se da vida física. Tempo curto para uma vida comum. Extremamente longo para quem, como ela, passou a vida num leito, impossibilitada de executar os mínimos movimentos que lhe permitissem, por si só, andar, falar,alimentar-se e fazer a própria higiene.
                Aos dois anos uma meningite paralizara-lhe o desenvolvimento e, a partir de então, nossa personagem, ainda um bebê, permaneceu bebê por mais... quarenta e cinco anos..
                Filha de Ana Rosa da Silva, uma das mais antigas moradoras do nosso Recanto Fraterno, Catarina nos ensejou, pelas condições em que viveu, a visão de um quadro de abnegação, renúncia,sacrifício e heroísmo.
                Dona Ana, assim a tratávamos na intimidade, ingressou em nossa instituição juntamente com a pequena família, o companheiro Miguel, já então vitimado pela cegueira, e Catarina, totalmente tolhida em seus movimentos  pela paralização que a meningite havia deixado como sequela. Adentrava a valorosa mulher a nossa casa assistencial, carregando um pesado fardo: marido e filha em situação de invalidez dependendo dela para quase tudo.
                O tempo foi passando, após alguns anos o companheiro faleceu e D.Ana passou a dedicar-se inteiramente à filha. Ficou-lhe modesta pensão que, juntamente com o que a instituição lhe proporcionava,podia ela enfrentar o dia a dia, vencendo as dificuldades.
                Nos últimos anos, já octogenária, D. Ana continuava a árdua tarefa de   tantos anos: cuidar de seu neném, alimentando-o e higienizando-o várias vezes por dia. Compreensivelmente, uma quantidade de roupas muito maior do que teria qualquer família comum, devia ser lavada e enxugada. E D. Ana era então a única que ainda dispunha de fogão a lenha na casa que ocupava no Recanto, para poder enxugar roupas sobre o fogão quando não havia sol. Na era do gás engarrafado, encontrar lenha nas quantidades exigidas pelo consumo de D.Ana não era tarefa fácil. Apesar disso a lenha nunca faltou, ora eram restos de serraria, ora de casas demolidas cuja madeira não oferecia condições de reaproveitamento, ora era lenha comprada dos raros fornecedores que ainda mantinham a atividade. O dedo da Providência sempre abria portas para que D. Ana continuasse cumprindo sua nobre missão.
                Manifestando sua preocupação quanto ao futuro ela constantemente nos dizia: - Meu Deus! Se eu for antes quem vai cuidar deste anjo?
                De fato,em novembro de 1993, após breve enfermidade, D. Ana encerrava, aos oitenta e sete anos, uma existência sacrificial,  levando para o plano espiritual a preocupação de deixar o seu anjo, aos cuidados,  não sabia ela de quem.
                E mais uma vez a Providência Divina abria as portas para acalmar as preocupações de D. Ana. Uma de suas filhas, Antônia, que já vinha dando asssistência à mãe na enfermidade, passou a morar na casinha do Recanto e a atender Catarina. Fazia-o com enorme sacrifício pois morava no Capituva, tinha muitos filhos para atender o que a obrigava a fazer constantes idas e vindas. Assim mesmo cuidou de Catarina pelo espaço de nove meses. Para aliviar Antônia do encargo, para ela bastante pesado, a Providência novamente abriu as portas e Maria, outra filha de D. Ana, que morava no Retiro e tinha como companheiro o bom Izaias, resolveu cuidar de Catarina em caráter definitivo, levando-a para sua casa. E o bebê de D. Ana, que por nove meses foi o bebê de Antônia, passou a ser o bebê de Maria. Esta cuidou da irmã com extremos de desvelo por quase três anos.
                Nos primeiros dias do mês de julho de 1997, finalmente Catarina encerrou aqui na Terra sua etapa de dores. Deixou-nos motivos para profundas reflexões. Um deles, o mais surpreendente, foi a sobrevida que a fez permanecer no corpo físico por mais do dobro da idade normal para esses casos, pois, de acordo com informações da ciência médica, pessoas nas condições de Catarina, raramente atingem os vinte anos. De fato, pela falta absoluta de movimento, por anos e anos, seu intestino só funcionava com o uso de laxantes. Não bastasse isso, os ataques epiléticos que de tempos em tempos a achacavam, faziam seu mirrado corpinho contorcer-se entre esgares e espuma a sair pela boca.Após cada ataque, ela se quedava exangue, para depois, aos poucos, recuperar-se e continuar persistentemente a viver.O corpo fragílimo dava a impressão que o esgotamento levaria rapidamente à capitulação. No entanto, a natureza, fazendo verdadeiros prodígios, supria sempre aquele corpo de novas energias, para que a vida continuasse até um tempo que parecia cronometrado pelo destino.
                A que raciocínios nos induz o drama de Catarina?. Por quê, enquanto o comum das pessoas aprende a andar e a falar e, à medida que cresce e se desenvolve vai construindo a sua autonomia, desenvolvendo pelo estudo suas aptidões, para chegar à vida adulta exercendo o seu papel, sempre importante na comunidade, enquanto outras, como Catarina,  levam uma vida de quase meio século, aprisionadas num corpo atrofiado, sem voz, com movimentos mínimos, insuficiente para atender às mais elementares necessidades, totalmente dependentes de outrem para sua sobrevivência, numa situação irreversível, só solucionada pela morte?
                Procurando sintetizar o nosso pensamento e as nossas convicções sobre o assunto, diremos, nesta despretenciosa crônica,  que todos nós, sem exceção, somos viajantes do tempo,  e que nossa existência, como seres conscientes, conta com milênios de vidas sucessivas. Que assim,dos inúmeros acontecimentos que a história registra, não fomos apenas testemunhas mas também protagonistas. Quando, ao indagarmos onde se encontram os autores e as vítimas de muitos acontecimentos, dos quais nos horrorizamos ao tomarconhecimento, a resposta é que ao despojarmo-nos do corpo pela morte, conservamos integralmente a nossa personalidade, com toda a bagagem de conhecimentos, sentimentos e experiências que vimos acumulando nos séculos e séculos de etapas vividas aqui no mundo. E quando a consciência, juiz implacável, nos mostra de forma muito viva, os atos que, pela sua natureza , se caracterizam como crimes de lesa-humanidade, então o peso do remorso e de seu parceiro principal o complexo de culpa, nos impelo à auto-punição. Vai daí que muitos infratores da Lei Maior  estão em nosso meio, animando novos corpos, em processo de dolorosa mas voluntária terapia, para apagar da alma enferma, as marcas das transgressões às justas e sábias Leis Divinas. E, quem sabe, as vítimas de ontem não são os que hoje  amparam e assistem, aprendendo com isso o exercício do perdão que engrandece e liberta?
                Não sabemos e talvez nunca venhamos a saber qual o drama que está por detrás da excepcionalidade de Catarina. Podemos, no entanto afirmar que seu espírito este prisioneiro por quase meio século, enclausurado num corpo incapaz de movimentar-se. Prisão sem grades que, em vez de carcereiros, contou com o trabalho continuado de amorosos e solícitos familiares.
                O caso de Catarina foi de excepcionalidade em grau extremo. Lembremo-nos no entanto de outros excepcionais, cujo grau é mais leve, mas que requerem, quando colocados em nosso caminho, uma dose dobrada de amor, carinho, compreensão e trabalho. Podem ser almas que vem ao nosso encontro obedecendo ao impulso das grandes afeições que cultivamos no passado.
                No velório, antes de acompanharmos os despojos de Catarina até a sepultura, observamos a expressão do rosto. Parecia sorrir. Possivelmente o espírito,  quando sentiu aproximar-se o momento da libertação do longo cativeiro, deixou impressas as marcas da alegria de quem finalmente se liberta e se redime.
                A Catarina, manifestando-nos agradecidos pela maravilhosa lição de vida que sua vida sofrida nos deixou, e pelo exemplo de heroísmo anônimo, dado pelos que, pacientemente se consumiram no árduo trabalho de ampará-la, nossos calorosos votos de muito êxito nas novas empreitadas que hão de vir, e nos caminhos que percorrerá, buscando a evolução, rumo ao infinito.

                Caríssimos amigos(as), obrigado pela atenção,  até a próxima e um grande abraço do
               Prof. José Daher