segunda-feira, 30 de setembro de 2013

Apuros de um morto




            O conto, a seguir transcrito, faz parte do livro “Contos desta e doutra vida”. A obra é uma coletânea de acontecimentos, envolvendo seres encarnados, com desdobramentos na vida espiritual, das muitas atitudes equivocadas que tomamos, quando aqui ainda nos encontramos pisando o chão terráqueo, e nos transmite a ideia de uma, das possíveis situações que podem nos surpreender no além-túmulo.
Mostra-nos ainda as consequências das situações familiares não resolvidas , numa das inúmeras etapas reencarnatórias, que fazem parte da nossa jornada evolutiva. O livro foi psicografado pelo nosso Chico, o autor espiritual identifica-se pelo pseudônimo de Irmão X, que foi, quando encarnado, um escritor consagrado, e continuou no plano espiritual, com suas atividades literárias, tendo já nos presenteado com inúmeras obras psicografadas. Vamos à transcrição do conto que dá título  à  presente postagem.

            Quando Apolinário Rezende acordou, além da morte, viu-se terrivelmente sacudido por estranha emoção.
            Ouvia a esposa, Dona Francina, a chamá-lo em gritos estertorosos.
            E qual se fosse transportado à casa por guindaste magnético reconheceu-se de chofre, diante dela, que se descabelava chorosa.

            - “Ingrato! Ingrato!”- era o que a viúva dizia em pensamento, embora apenas tartamudeasse interjeições lamentosas com a boca.

            Julgando-se no corpo de carne, Rezende, em vão, se fazia sentir.  Gritava pela companheira. Pedia explicações .

            Esmurrava a mesa em que a senhora apoiava os cotovelos.

            Dona Francina, entretanto,procedia como quem lhe ignorava a présença. O infeliz, no primeiro instante, julgou-se dementado. Acreditava em pesadelo e queria retornar à vida comum.

            Beliscava-se inutilmente.

            Nisso, escutou o próprio nome no andar térreo.

            Despencou-se e encontrou Maria Iza, a copeira que se habituara a estimar como sendo sua própria filha, em conversação com advogado que lhe era amigo íntimo.

            O Dr. Joaquim Curado ouvia, atento a moça,  que lhe confidenciava uma infâmia.

         A empregada, que sempre lhe recolhera a melhor atenção, não se pejava de acusá-lo, afirmando que o pequeno Samuel, o menino que lhe nascera, quatro anos antes, do coração de mãe solteira, era filho dele Rezende. A serviçal, no extremo da calúnia, dramatizava em pranto. Dizia
despudorada, que seu filhinho Samuel não podia privar-se da herança, que ela, em outros tempos, vivia sofrendo injuriosas cenas de ciúme, por parte da patroa, e que estava agora resolvida a colocar a questão em pratos limpos.
          Apolinário cerrou os punhos e dispunha-se a esbofeteá-la, quando o causídico asseverou: “Bem, desde que o Rezende morreu...”
         O pobre espírito liberto sofreu tremendo choque. Morrera então?
          Que significava tudo aquilo?
    Sentia-se louco... Gritou desesperado, lembrando fera aguilhoada no circo, mas os dois interlocutores nem de leve lhe perceberam a reação, e o entendimento continuou...
        Chorando copiosamente, Apolinário ficou sabendo que o inventário dos seus bens seguia em meio, que Maria Iza alegava-se seduzida por ele e exigia mais de dois milhões de cruzeiros, parte igual ao montante que se reservava a cada um de seus filhos.
          O Dr. Joaquim falava em exame de sangue e pedia provas.
     A moça notificou que Renato, o filho caçula de Dona Francina fora testemunha da experiência infeliz a que se submetera,em acedendo às

tentações que lhe haviam movidas pelo morto.
        Aterrado, Rezende viu seu próprio filho mais novo entrar, a chamado, no parlatório doméstico, apoiando a invencionice.
   O jovem, que ultrapassara os vinte e dois de idade, preocupava-o sempre, pelo caráter leviano; contudo, não foi sem espanto que passou a escutá-lo, confirmando a denúncia.
     Perante o advogado, surpreendido, Renato anunciou que simplesmente tocado pela compaixão, deliberara ajudar Maria Iza, declarando que o pai,pilhado por ele em vários encontros com ela, resolvera confiar-lhe a verdade, salientando que um dia, quando viesse a falecer, o menino Samuel não devia ser esquecido, de vez que lhe devia a paternidade.
         Rezende,tomado de repugnância, desmentia tudo, até que lhe pareceu ouvir os pensamentos do filho, compreendendo por fim, que Renato se mancomunara com a copeira, de modo a senhorear metade da importância que a ela fosse atribuída pela Justiça.
            Entendeu a chantagem.
       O rapaz pretendia o maior quinhão e, para isso, não vacilava enxovalhar-lhe o nome.
       Abatido, procurou Reinaldo,o filho mais velho,moço de comportamento exemplar; entretanto,foi achá-lo no gabinete, conformado com a situação. O irmão desfechara habilmente o golpe e o primogênito preferia perder parte da herança a desrespeitar a memória do pai.
     Voltou Rezende ao quarto da esposa e debalde quis confortá-la.
          Dona Francina ensopara o lenço de lágrimas. Não chorava tanto o dinheiro de que deveria dispor. Lastimava a suposta infidelidade do falecido marido. Recordava todos os dias felizes, em que ambos haviam desfrutado confiança perfeita... Era preciso ser desumano para que lhe mentisse, qual o fizera, dentro do próprio lar. Ansiava conservá-lo puro, na lembrança, viver o resto da existência preparando-se para reencontrá-lo entretanto...
  Esforçava-se Rezende para consolá-la, a procurar em si mesmo a razão por que sofria semelhante prova, quando lhe ocorreu um estalo na consciência. Via-se recuar, recuar...
  Maria Iza recebera dele tão somente considerações respeitosas; contudo, Julieta surgia-lhe agora... Fora-lhe a companheira de juventude, quarenta anos antes... Menina de condição modesta aguentara-lhe a ingratidão. Cedera aos seus caprichos de moço impulsivo e passara a aguardar-lhe um filhinho, confiando no casamento. Examinando , porém, as próprias conveniências obrigara Julieta a sujeitar-se a vergonhoso processo abortivo   e, em seguida, ao vê-la frustrada abandonou-a na vala do meretrício.
      Rezende, atormentado em dolorosas reminiscências, inquiria a si próprio se a calúnia de Maria Iza seria a resposta do destino ao sarcasmo em que lançara Julieta... Onde encontrar a vítima de outra época? Por outro lado, ali estava Dona Francina, a reclamar-lhe assistência, e Maria Iza a quem devia perdoar a seu turno.
              Tateava o crânio em fogo.
         Atravesssava o primeiro dia de consciência acordada, depois da morte, e parecia estar no inferno mental, desde muito tempo.          
       Caiu a noite e Rezende permaneceu aflito junto da esposa,tentando em vão falar-lhe durante o sono...
            Manhã cedo, Dona Francina levantou-se, orou à frente da própria imagem dele, na foto de cabeceira, tomou grande ramo de flores e saiu na direção de um templo. Apolinário seguiu-a reconhecendo emocionado, que a esposa encomendara um ofício religioso, a benefício de sua felicidade.
Findas as preces, Dona Francina tocou para o cemitério.
Só então Rezende veio saber que a leal companheira comemorava o sexto mês de sua partida.
Cento e oitenta e três dias de inconsciência na vida espiritual.
Assombrado,fitou a esposa, que se ajoelhara à frente do seu próprio  túmulo. Entre angustiado e curioso, inclinou-se para a lápide e soletro espantadiço:

            “Aqui jaz Apolinário Rezende”. E, em letras menores: “Orai pelo descanso eterno de sua alma”
            Quando leu as palavras “descanso eterno” Rezende passou a refletir sobre as agonias morais a que era submetido, desde a véspera, e, embora sentindo imenso desejo de chorar, esqueceu a quietude do campo santo e desferiu, em desespero, enorme gargalhada...